14 janeiro, 2016

ROADHOUSE

Conto originalmente publicado no livro Notícias do Submundo (2014)



Eu conheci esse maluco e mais uma trupe de vagabundos e per-didos na vida nesse bar na beira da estrada, um bar com um velho falido que afirma, mesmo com sua carcaça já deteriorada, que vive caçando veados por aí no meio da mata. Acho isso meio estranho, às vezes ele some por dias e quem fica cuidando do bar é sua es-posa, uma coroa ainda enxuta que se não fosse tão fiel ofereceria muita coisa boa aos seus clientes. A filha dela é uma ninfeta de causar inveja, e levava, segundo os meus cálculos, uma média de cento e vinte cinco cantadas por dia de trabalho, recusando todas elas com uma pose de se admirar, calava a boca dos bêbados per-didos e rebolando sensualmente para retomar seu lugar atrás do balcão, de onde ficaria lavando os copos e preparando as bebidas, fingindo que não escuta os comentários sexuais selvagens sobre ela que os bêbados faziam entre si.
Mas esse maluco do qual eu vinha falando tinha passado a juventude em uma casa de detenção para menores infratores, e ele vinha ali, quase todos os dias, morava ali perto, assim como eu, éramos dois errantes que só conseguiam aceitar a sociedade sain-do do furacão de desespero que se tornaram as grandes cidades, e viemos nos instalar nas cabaninhas pau a pique isoladas perto das montanhas desertas, onde eu escolhi bem o local pra ficar, afastado, mas com boa visão para a estrada, para eu ver essa gente que corre o mundo dentro de veículos sem saber por que, e eu ficava ali admirando por horas, vivendo de alguns rendimentos, de alguns livros vendidos, e eu saía às vezes pra dar uns tiros pro ar e cagar no meio da mata; foi assim que conheci esse rapaz, sujeito simpático, é o único que escuta de verdade os meus poemas quan-do estamos bêbados no canto daquele bar sujo. Os assuntos eram literatura, sexo e existência, as únicas coisas das quais eu sabia fa-lar, e o cara me escutava, embora não concordasse com a maioria das minhas opiniões, e sempre acabava falando de quando ele foi pedófilo, mas agora estava recuperado e só gostava de coroas, seu maior desejo era comer a dona do bar; aí eu falei que sexo é entre-ga, aí ele me contou uma história.
Chupando caralhos da natureza, chupando paus de desconhe-cidos, abrindo e lambendo bucetas desconhecidas, rapadas, com desenhos, matagais ao estilo francês, comendo cus rosados, pretos, virgens ou bem largos, lambendo e chupando peitos redondos, ovais, pequenos e gigantes, trepando em todos os lugares ao mesmo tempo, nas ruas, nas quitandas, nos fios de alta tensão, dentro do mar, em cima de estantes, dentro do elevador panorâmico, na Torre Eiffel, dentro da geladeira, chupando, batendo, gozando em quem viesse à frente, atrás, em qualquer latitude, com qualquer formato, com qualquer ideia, pondo inclusive no buraco das árvores, de to-cos, em buracos no chão, no buraco da telha, isso pra mim, levando gozadas na cara, gozando em olhos alheios, é vida sexual ativa, o res-to é conversa fiada, o que me faz entender que não existe ninguém no mundo sexualmente ativo, isso me disse uma vez um ex-traveco que agora é pastor numa comunidade, e que joga cartas todas as sex-tas-feiras bebericando uísque cowboy com os cafetões das putas da Avenida Brasil, e que publica poemas numa editora pequena. Foi aí que meu amigo me disse: ninguém sabe o que é sexo de verdade, no fundo as relações são qualquer coisa meio masturbatória e patética.
Aí fui pra casa dormir de tristeza.
Correndo pelo parque, árvores balançando, vento cada vez mais forte, fim de tarde típica de outono. As luzes apagando, já noi-te, em três segundos já estava no meio do matagal e vi seis barri-gudos correndo atrás da Mel Lisboa que chupava pirulitos cheios de humanidade, vi Jesus brincando de pega-pega com Maria Ma-dalena, vi o Batman brigando com o Chapolin para tirarem a capa do Superman, vi Raul Seixas negando Cristo por três vezes, digo, a ditadura, vi Jack Kerouac cagando na limusine de George W. Bush, vi Fernando Pessoa discutindo a ordem mundial sentado em um café palestino com dois padres e com José Saramago a intermediar o debate, vi Hitler dando uma palestra a políticos israelenses, vi Ma-chado de Assis tentando convencer Bentinho a ir pra Suíça atrás da Capitu, pois ela não tinha morrido, ele mesmo, Machado, tinha in-ventado sua morte, e aí eu acordei, a bebedeira ainda não tinha pas-sado, mas eu já conseguia identificar onde estava, estava no velho bar da estrada deserta. Mas como eu havia ido parar ali? Eu devia ter enchido a cara em casa e atravessado a estrada e entrado pela porta do bar sem mesmo perceber. Voltei pra casa.
Eu estava um pouco entediado ali, queria ir embora, mas aí lembrei de quando tive o surto na cidade, olhando para todas aque-las pessoas, todo aquele ritmo. Gente interessante sendo perdida, as pessoas boas morrendo de tanto serem ricas. Ah, Ginsberg, eu também vi a minha geração morrendo de fome, mas não estavam histéricos nem nus, estavam passíveis e cobertos de penduricalhos, cheios de felicidade gratuita, todos cheios de euforia da tranquili-dade de shoppings e com seus aparelhos de ar condicionado, es-tacionamento e segurança. Eu vi aquelas conquistas irem esgoto abaixo, e vi a revolução se transformar em egoísmos de direita, e os expoentes estão escondidos, com muita vergonha de serem o que são. Foi ali que não aguentei mais e vim embora.
Todas as vezes que penso nisso acabo me acalmando e aprovei-tando mais a vida nessa cabaninha, olhando aquela estrada bonita,e aquele bar onde passa tanta gente, que troca algumas palavras com a gente, fala um pouco da vida, depois vai embora e nunca mais veremos. Sei que isso soa meio romântico, mas é bonito tam-bém. E o lugar que eu escolhera era realmente muito bacana. Às vezes eu vou me embrenhar nas matas que se escondem por detrás da cabana, um lugar semiaberto e semi-explorado, o que me faz sentir um dos primeiros homens a pisar a li. Eu levo um livro, mas na maioria das vezes eu me distraio vendo os pássaros cantarem. Antes de voltar eu sempre dou uma cagada entre as plantas, con-tribuindo com meu esterco àquela restauração natural. Aquilo me dá uma sensação de desprendimento e de liberdade, e ao mesmo tempo me sentindo útil. Aí eu sempre volto à cabana pra tomar um vinho barato e ver se consigo escrever algo. Na maioria das vezes sai algo que preste. E aí vou catalogando, juntando as folhas em um baú, pra daqui alguns anos alguém encontre o que ali ficar e publicar postumamente.
No fundo a gente escrever porque tem que escrever, é maior que nós. Ser lido é pra poucos, infelizmente, não porque falta capacidade nos seres humanos, o que falta é vontade de ser um pouco diferente do que somos. Construímos uma casa interior com ar condicionado, aquecedor, água quente, banheira, hidro-massagem, um belo bar com vinhos franceses, italianos, chilenos, californianos, portugueses, sul africanos e australianos, chamamos os amigos para jantar e vivemos com um grande conforto. Qual-quer ameaça em quebrar essa bela imagem de domicílio e con-trole é assustadora. Não dá pra criticar todo mundo na mesma medida, somos seres humanos, e o que fazemos de melhor é ter medo. Medo da morte, medo de Deus, medo do mundo, medo das mudanças, medo de escolhas, medo do desconhecido, medo de nós mesmos. Alguns não são maus, são só medrosos. As coisas que faço, normalmente são feitas por pessoas que são classificadas como corajosas. Bom, na minha concepção, eu faço tudo porque tenho medo. A coragem não passa de hiatos entre um vento e uma brisa de medo. Escrever pode ser meu único ponto de coragem, mas também pode ser medo de sair do minicastelo que construí para viver, em uma realidade elaborada. Mas o conhecimento tal-vez liberte, porém ele é ameaça às nossas construções.
Depois de escrever um conto, voltei ao bar da estrada. Eu gostava de beber o estoque de vinhos que eu tinha na cabana, que, diga-se de passagem, por essa hora já está quase acabando, o que tornará daqui há alguns dias minha permanência por aqui um tan-to questionável. Mas eu gostava também de ir beber umas cervejas com aquela trupe de desconhecidos que aparecia vez ou outra por lá. Eu ficava, da cadeirinha confortável debaixo de umas árvores, observando o movimento lá do bar. Se aparecesse alguns carros ou motos diferentes eu corria pra lá pra tomar umas e ver se conhecia alguma gente interessante. Nesse dia vi um pessoal que foi che-gando de carona. Primeiro foi um com cara e jeito de estrangeiro, minutos depois foi outro, vestido da mesma maneira. Depois outro e mais um outro, e minutos depois duas garotas. Todos entraram no bar. Resolvi descer para conferir.
Pedi uma cerveja e fiquei ali mesmo no balcão. A trupe que tinha chegado de carona se conhecia, e estavam sentados ao meu lado. Os caras eram todos barbudos e traziam uma mochila média. As mulheres, lindas por sinal, estavam com mochilas um pouco maiores. Falavam dois, três, quatro idiomas entre si. Pareciam ter vindo cada um de um lugar diferente do mundo. Resolvi puxar papo e descobri que estavam atravessando as Américas de ponta a ponta, do glacial norte do Canadá às geleiras no sul da Argentina. Os caras eram bacanas, e me contaram todos os porres que toma-ram e as pessoas que conheceram. Era a segunda vez que faziam essa viagem. Eles gostavam de todos os povos, em todos os luga-res existem pessoas boas e más, mas me disseram que preferiam os mexicanos e colombianos, muito mais simpáticos e abertos a conversas e a curtições. Os caras eram bacanas, logo descobri que eram gays, eles me perguntaram o mesmo, e respondi que não. A conversa foi super amigável. Uma das gurias tinha namorada, e a outra era a única que não era gay e estava sozinha, mas meio triste, achei que não rolaria nada, embora tenha me interessado muito por ela. Disseram que era artista plástica e pianista.
Duas horas depois as paredes da cabana balançavam e aquela artista linda estava deitada comigo. Estávamos bêbados e carentes, então transamos loucamente durante algumas horas. Eu não con-seguia me desgrudar daquele corpo, com uma leve barriguinha, com estrias na parte de trás. Mas como ela era bela. É dessa imper-feição que eu gosto, dessa coisa esculpida e não acabada, sujeita ao tempo e às deformidades. Eu amo mulher assim. Gosto desse toque no corpo todo, sem tabus. Essa coisa de filme pornô, onde o contato é só no órgão sexual é pura construção boba para o mer-cado cinematográfico pornográfico. Mais que penetração, o sexo é toque, é abraço, é beijo em todas as regiões do corpo. Eu gosto de beber o vinho do corpo dela, licoroso, com taninos marcantes, o semi-odor do suor, do transpirar nos lençóis.
Ela me chamou para seguir adiante com ela, viajar junto, abandonar a cabana. Eu a convidei para ficar ali, para plantarmos alguma coisa, produzir alguma obra genial e tentar salvar a huma-nidade, pois nossa geração estava quase perdida. Ela riu porque eu ainda acreditava nas utopias. Mas vamos decidir isso quando ela acordar. Agora ela dorme, tentando se recuperar do sexo e da bebedeira que o antecedeu. Há meses eu não tinha isso. Fiquei só fitando o teto, sentindo a baforada de ar quente que vinha pela janela aberta. Com certeza seus amigos já estavam bêbados e jo-gados pela mata, eu mesmo fui o responsável de apresentá-los. A última memória que tenho é que eles estavam fumando uma erva maravilhosa e discutindo sobre a medicina no país. Dentro de alguns minutos eu dormirei, abraçado a essa pequena, provando que sexo é muito maior do que essas coisas que a indústria nos coloca. Talvez eu a acompanhe, para tentar descobrir exatamente o que vim fazer no mundo, para tentar executar o que alguém me delegou, mas esqueceu de me informar. Mas só vou decidir depois de acordar, e ver se tudo aquilo que eu venho vivendo e bebendo não passa de um sonho, de uma realidade inventada para suportar tudo o que o mundo nos impõe.