17 março, 2016

DINAMENE E O MUNDO TRANSVIADO





Hoje, mais de cinco milhões de pessoas vão acordar querendo mudar de emprego. Outras setenta e nove mil vão querer o divórcio. Três milhões quatrocentos e doze mil querem ficar famosas. Algumas centenas de milhares continuarão eternamente sonhando com a sua casa própria. E eu só querendo uma tarde de folga para ir ao piquenique. Olhar aquela calcinha de bolinhas pelo vão da saia colorida. Nós nos beijaríamos no parque e se ela não quisesse me acompanhar até em casa, eu me despediria tranquilo e seguiria meu caminho, voltando pra casa e batendo uma punheta calma, como quem se esquece do mundo.
Mas, Dinamene não deixa mais seus tênis vermelhos sobre os meus encardidos. Dinamene não reza mais um terço todos os dias pra eu chegar bem do trabalho. Dinamene se afogou em si mesma. Dinamene jogou-se na correnteza. Seus olhos não repuxam mais, descansam dessa luta que parecia eterna. Sua vagina invertida voltou ao lugar de origem. Seus dentes do juízo não gritam como antes.  Dinamene cozinhava muito bem. Nunca mais comerei seu bife a Camões.
        Quando Dinamene suspirou fugazmente pela última vez, Pedro Alquilar gozava freneticamente com travestis embaixo de um moitel no sul da Espanha. Alquilar é banqueiro e nunca revelou a ninguém seu desejo de vestir meias longas e cor-de-rosa e cantar “I Will Survive” com o vibrador, que tinha encomendado pela loja virtual e que chegou à sua casa com toda da discrição possível, fazendo as vezes de microfone.
        No dia em que eu conheci Dinamene, Yan Massum tirou folga do seu trabalho, algo raro de acontecer. Foi ao cinema comendo um tablete de chocolate. Yan Massum gostava de chocolate. Trabalhava doze horas por dia numa indústria de bicicletas no Japão. Morreu aos 29 anos, assassinado pelo marido da vizinha, com quem ele tinha um caso há cinco meses. Ela tinha sido sua única mulher. Antes dela, Massum era virgem.
Quando a mãe de Dinamene perdeu a virgindade, e, consequentemente, engravidou dela, um italiano se escondia por entre arvoredos no sul da bota. Nunca voltaria a ver a sua terra. Giuseppe Firenzio foi pra América do Sul. Nunca gostou de espaguetes apesar da origem. Fugiu da guerra por ajuda de um primo. Trabalhou três anos na Argentina para uma montadora francesa. Morreu atropelado na Avenida Nove de Julho em 1952.
Quando eu despi Dinamene pela primeira vez, José Oliveira era internado no Rio de Janeiro.  Brasileiro e filho de portugueses, sempre gostou de ler as histórias sobre Vasco da Gama. Adotou o time no Brasil. Morreu de infarto, quando o time caiu pra segunda divisão, aos oitenta e dois anos de idade.
Naquele tempo em que eu vagabundeava nas coxas de Dinamene, Anna Kolonovic tinha seu sexto aborto espontâneo. Casou com um viúvo que tinha seis filhos de outro casamento. Aceitou-os como se fossem seus. Anna Kolonovic trabalhou assiduamente para a União Soviética durante a segunda guerra mundial fabricando bombas. Passou o resto da vida cuidando dos filhos, netos e bisnetos. Morreu aos cento e um anos faz algumas horas.
        Essa gente tinha um céu interno, essa gente tinha o peito farto. Dinamene também tinha. Era mortal e eu não percebera. Pensei que ela fosse personagem minha e que eu pudesse lhe dar vida quando eu quisesse. Dinamene nunca foi criação minha, ela existiu. Escorreu entre os meus dedos em um dia chuvoso. É que eu sempre pensei em Dinamene, antes mesmo de a gente existir.
        Quando Napoleão assumiu o poder, eu já queria Dinamene. Quando Colombo descobriu a América, eu já conhecia Dinamene na minha mente. Quando Platão inventou o mito da caverna, eu já conseguia olhar pra fora da minha caverna e ver Dinamene no portão. Quando Pedro parou de pescar para seguir Jesus, eu já tinha ciência da futura existência de Dinamene.
        Hoje eu acordei com vontade de Dinamene, de lhe dedicar um poema pra apaziguar a culpa do meu peito. Faço mea culpa por deixar Dinamene se afogar em sua loucura. Não lhe prestei devida atenção, quis salvar sempre os textos que escrevia. O barco foi virando, e Dinamene foi embora muito cedo.
        Eu me lembro muito bem daquela pinta meio Marylin Monroe. Daquelas coxas envoltas num lençol branco. Eu pinto com os dedos da memória aquela tinta grossa, os excessos de contornos amarelos e tintas verdes, vermelhas, pretas à la Van Gogh da caricata existência de Dinamene.
        Quando eu falo dela, o tempo se desconecta, não tem cronologia que resista à memória de Dinamene. O mundo é meio às avessas sem a presença dela. Ela era a ordem e a desordem, a tranqüilidade e o caos. Dinamene era o equilíbrio do mundo. Agora o mundo é transviado. Se o mundo soubesse que uma Dinamene já passou por aqui talvez vivêssemos sem guerra. Dinamene é minha pieguice. É meu carma. Dinamene me sepulta todos os dias.
        E hoje as pessoas vão vivendo como se Dinamene nunca tivesse existido. Cinco milhões de homens vão entrar em casa sem olhar pra esposa. Três mil quinhentas e noventa mulheres vão trair seus maridos. Oito milhões novecentos e quinze mil aceitarão suborno. Setecentas e quatorze morrerão de infarto. Quatrocentos milhões perderão o sono por estarem preocupadas com o salário que já está acabando.
        No fundo eles todos sabem, mas não têm coragem de encarar o mundo com a imagem de Dinamene.  Mas Dinamene se afogou em meus lençóis, e eu nunca soube nadar.

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