Hoje,
mais de cinco milhões de pessoas vão acordar querendo mudar de emprego. Outras
setenta e nove mil vão querer o divórcio. Três milhões quatrocentos e doze mil
querem ficar famosas. Algumas centenas de milhares continuarão eternamente
sonhando com a sua casa própria. E eu só querendo uma tarde de folga para ir ao
piquenique. Olhar aquela calcinha de bolinhas pelo vão da saia colorida. Nós
nos beijaríamos no parque e se ela não quisesse me acompanhar até em casa, eu
me despediria tranquilo e seguiria meu caminho, voltando pra casa e batendo uma
punheta calma, como quem se esquece do mundo.
Mas,
Dinamene não deixa mais seus tênis vermelhos sobre os meus encardidos. Dinamene
não reza mais um terço todos os dias pra eu chegar bem do trabalho. Dinamene se
afogou em si mesma. Dinamene jogou-se na correnteza. Seus olhos não repuxam
mais, descansam dessa luta que parecia eterna. Sua vagina invertida voltou ao
lugar de origem. Seus dentes do juízo não gritam como antes. Dinamene cozinhava muito bem. Nunca mais
comerei seu bife a Camões.
Quando Dinamene suspirou fugazmente pela
última vez, Pedro Alquilar gozava freneticamente com travestis embaixo de um
moitel no sul da Espanha. Alquilar é banqueiro e nunca revelou a ninguém seu
desejo de vestir meias longas e cor-de-rosa e cantar “I Will Survive” com o
vibrador, que tinha encomendado pela loja virtual e que chegou à sua casa com
toda da discrição possível, fazendo as vezes de microfone.
No dia em que eu conheci Dinamene, Yan
Massum tirou folga do seu trabalho, algo raro de acontecer. Foi ao cinema
comendo um tablete de chocolate. Yan Massum gostava de chocolate. Trabalhava
doze horas por dia numa indústria de bicicletas no Japão. Morreu aos 29 anos,
assassinado pelo marido da vizinha, com quem ele tinha um caso há cinco meses.
Ela tinha sido sua única mulher. Antes dela, Massum era virgem.
Quando
a mãe de Dinamene perdeu a virgindade, e, consequentemente, engravidou dela, um
italiano se escondia por entre arvoredos no sul da bota. Nunca voltaria a ver a
sua terra. Giuseppe Firenzio foi pra América do Sul. Nunca gostou de espaguetes
apesar da origem. Fugiu da guerra por ajuda de um primo. Trabalhou três anos na
Argentina para uma montadora francesa. Morreu atropelado na Avenida Nove de
Julho em 1952.
Quando
eu despi Dinamene pela primeira vez, José Oliveira era internado no Rio de
Janeiro. Brasileiro e filho de
portugueses, sempre gostou de ler as histórias sobre Vasco da Gama. Adotou o
time no Brasil. Morreu de infarto, quando o time caiu pra segunda divisão, aos
oitenta e dois anos de idade.
Naquele
tempo em que eu vagabundeava nas coxas de Dinamene, Anna Kolonovic tinha seu
sexto aborto espontâneo. Casou com um viúvo que tinha seis filhos de outro
casamento. Aceitou-os como se fossem seus. Anna Kolonovic trabalhou
assiduamente para a União Soviética durante a segunda guerra mundial fabricando
bombas. Passou o resto da vida cuidando dos filhos, netos e bisnetos. Morreu
aos cento e um anos faz algumas horas.
Essa gente tinha um céu interno, essa
gente tinha o peito farto. Dinamene também tinha. Era mortal e eu não
percebera. Pensei que ela fosse personagem minha e que eu pudesse lhe dar vida
quando eu quisesse. Dinamene nunca foi criação minha, ela existiu. Escorreu
entre os meus dedos em um dia chuvoso. É que eu sempre pensei em Dinamene,
antes mesmo de a gente existir.
Quando Napoleão assumiu o poder, eu já
queria Dinamene. Quando Colombo descobriu a América, eu já conhecia Dinamene na
minha mente. Quando Platão inventou o mito da caverna, eu já conseguia olhar
pra fora da minha caverna e ver Dinamene no portão. Quando Pedro parou de
pescar para seguir Jesus, eu já tinha ciência da futura existência de Dinamene.
Hoje eu acordei com vontade de Dinamene,
de lhe dedicar um poema pra apaziguar a culpa do meu peito. Faço mea culpa por deixar Dinamene se afogar
em sua loucura. Não lhe prestei devida atenção, quis salvar sempre os textos
que escrevia. O barco foi virando, e Dinamene foi embora muito cedo.
Eu me lembro muito bem daquela pinta
meio Marylin Monroe. Daquelas coxas envoltas num lençol branco. Eu pinto com os
dedos da memória aquela tinta grossa, os excessos de contornos amarelos e
tintas verdes, vermelhas, pretas à la
Van Gogh da caricata existência de Dinamene.
Quando eu falo dela, o tempo se
desconecta, não tem cronologia que resista à memória de Dinamene. O mundo é
meio às avessas sem a presença dela. Ela era a ordem e a desordem, a
tranqüilidade e o caos. Dinamene era o equilíbrio do mundo. Agora o mundo é
transviado. Se o mundo soubesse que uma Dinamene já passou por aqui talvez
vivêssemos sem guerra. Dinamene é minha pieguice. É meu carma. Dinamene me
sepulta todos os dias.
E hoje as pessoas vão vivendo como se
Dinamene nunca tivesse existido. Cinco milhões de homens vão entrar em casa sem
olhar pra esposa. Três mil quinhentas e noventa mulheres vão trair seus
maridos. Oito milhões novecentos e quinze mil aceitarão suborno. Setecentas e
quatorze morrerão de infarto. Quatrocentos milhões perderão o sono por estarem
preocupadas com o salário que já está acabando.
No fundo eles todos sabem, mas não têm
coragem de encarar o mundo com a imagem de Dinamene. Mas Dinamene se afogou em meus lençóis, e eu
nunca soube nadar.
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